Chances

"Mas isso eles não vão aceitar, André. De jeito nenhum."

Essa frase é minha. André é um "cliente".

Coloco entre aspas porque não é um cliente tradicional, daqueles que contratam um planejador financeiro para organizar as contas, investir dinheiro ou algo do tipo. André é um artista famoso.

Ele foi convidado por uma empresa gigantesca para conduzir um projeto que, vez ou outra, se conecta com educação financeira – eu era o consultor técnico, estava ali pra dar pitaco.

O redator escreveu uma peça, com base nos conceitos que eu havia explicado na reunião anterior, e nós estávamos todos juntos, ao redor da mesa, para uma última revisão antes de enviar para o contratante.

A peça, na minha visão, havia ficado ousada demais. O contratante, que estava pagando esse trem todo, é conservador, gosta das coisas mais quadradinhas, eu já havia trabalhado com ele em outro momento, então achei uma boa dar uma catracada e já soltei logo o "amigos, eu já tentei soluções mais pra frentex com esse cliente, não vai rolar, melhor revermos".

André, num momento de lucidez (é raro, gente, artista é um bicho muito doido), me perguntou: "mas você concorda que a solução mais descolada é muito melhor?".

Concordei. Era, de fato. E ele seguiu:

"A censura por parte do cliente está fora do nosso controle, pode ser que aconteça, você tem razão, pode ser que bata lá e volte".

Achei que ele havia concluído. Porém ele continuou.

"Mas a auto-censura está. Eu acho aceitável o cliente acabar com a festa de todo mundo, mas podar aqui dentro de casa, antes de mandar pra lá, não. É direito do cliente optar por outra rota, mas é nosso dever entregar o que julgamos ser o melhor".

O comentário dele me deixou meio desconsertado. Assenti com a cabeça e guardei pra mim.

Sou muito fã do trabalho do contratante mas, por conta da equipe que integrei, esse foi um projeto triste. Poucas empreitadas profissionais me causaram tanta frustração, já tinha quase 10 anos que eu não perdia sono por conta de trabalho. Ainda hoje, quando eu lembro dos meses em que estive por lá, sinto meu pescoço endurecendo.

Mas esse pontinho sobre não colocar vírgulas e ressalvas no que nos brilha e, ao mesmo tempo, abrir espaço para que o outro nos surpreenda, eu guardei com todo o carinho do mundo.

Gosto de mantê-lo por perto, como uma espécie de sentinela, sempre alerta, um zelador da liberdade. Das liberdades, aliás: da minha liberdade de manifestar o que julgo mais benéfico para a situação e da liberdade do outro, de simplesmente optar por um novo caminho e, livre, nascer novamente diante dos meus olhos.

Heloísa Sanchez