Escutei de um cliente

Hoje, no aeroporto, naquelas poltroninhas duras que são oferecidas aos que embarcarão em breve, me sentei ao lado de um rapaz corpulento, com as veias dos braços saltadas e o rosto sisudo, que utilizava fones de ouvido e lia um livro. Nos fones a Gal Costa e nas mãos um livro do Cortella.

Não sei o que me chamou mais a atenção, a Gal gritando “baaaaaaby” ou o livro do Cortella. Após questionar meu próprio estranhamento – só porque ele tem aparência bruta ele deveria ler a biografia do Schwarzenegger e escutar Sepultura? –, resolvi cometer o clássico da falta de ética socialmente aceitável, vesti a carapuça do futriqueiro e comecei a ler o livro junto com o colega do lado 🤷‍♂️

O livro não me pegou muito, mas de algum jeito estranho aqueles parágrafos me relembraram que há tempos venho pensando em iniciar uma pequena série de textos com algumas citações dos clientes que, de alguma forma, em alguma medida, moldaram meu jeito de pensar e enxergar o mundo hoje. Chamarei a série de “escutei de um cliente”.

Ao contrário do Cortella, não me preocuparei em escrever textos rechonchudos e bem resolvidos, com desfechos bem elaborados, começo-meio-e-fim e dinâmica de certo-ou-errado. Eventualmente serão relatos crus.

Neles, o personagem sempre se chamará Carmen. Era o nome da minha avó (a senhorinha mais à esquerda), ela sempre tinha bons conselhos, achei que seria auspicioso.

Vamos ao primeiro.


pós muitos desmarques, conseguimos encaixar as agendas e embarcamos na nossa reunião de revisão semestral.

Não lembro exatamente onde ela estava (essa história se passa em 2017). Ou ela estava no hospital, ou estava na iminência de voltar para lá, para repetir a rotina dos últimos meses: intercalar horas e horas de uma espera aflita e desacreditada, ao lado do pai, cujos orgãos já não respondiam, com breves e poucos momentos de descanso, em casa.

Em algum momento da nossa conversa, após ajeitarmos o que era imprescindível, eu, preocupado com as olheiras fundas e o rosto chupado dela, perguntei, com toda a delicadeza que me cabia na época: “Carmen, quase três meses que você está nessa rotina… não seria razoável contratarmos um cuidador para revezar com você nas madrugadas?”. A resposta veio breve.

“Às vezes é importante ser a pessoa que fica, Edu”.

Demorei alguns segundos para entender que ela não estava sendo literal. Frente ao meu silêncio, ela seguiu. “Eu sei que não tem nada prático para ser feito aqui”.

Segui em silêncio, nesse momento não era comigo que ela falava. “Deixa eu te explicar. Pensa que o teto de casa está caindo. É bom ter quem esteja ali pra consertar o teto junto com você, não é?”.

Assenti com a cabeça.

“É ótimo ter quem conserte o teto junto com você. Raro de achar e ótimo. Só que às vezes o teto está caindo e não tem conserto, Edu. E você não vai conseguir sair da casa. O teto está caindo, não tem conserto e não tem saída.“

Tudo ficou muito claro para mim.

“Nessa hora, é ainda mais raro encontrar os que ficam. Os que ficam porque sabem que você não tem escolha. Os que ficam porque sabem que é melhor não estar sozinho quando o teto está irremediavelmente desabando na sua cabeça”.

Já se passaram mais de 6 anos desde que esse encontro aconteceu e, desde então, essa aspiração segue comigo. Que sejamos os que ficam, amigos.

Heloísa Sanchez