Esse texto é um abraço

Por aqui as coisas estão caminhando. Me sinto um pouco exausto. Fico constantemente com o celular na mão, com medo de receber um WhatsApp dos meus pais dizendo que estão com dor de garganta, atualizo o portal de notícias 50 vezes por dia, me desespero com cada depoimento e uso fórmulas obscuras do Excel para projetar se as coisas por aqui estão piorando em velocidade italiana ou velocidade chinesa. Meus amigos seguem indecisos, não sabem se estão com mais medo de pegar o vírus ou de perder o emprego.

De um jeito meio estranho, porém, em momentos aleatórios, eu me esqueço de tudo. Me surge uma espécie de confusão mensal. Hoje de manhã, por exemplo. Eu acordei, pus a água pra ferver e me recostei na pia para esperar, ansioso pelo café. O dia amanheceu aberto, bonito, me ocorreu de ir buscar o tênis que ficou no carro e sair pra correr em algum lugar. Que coisa cheia de possibilidades é um domingo, meu deus. Depois eu poderia assar pão de queijo. Não devo comer demais, pensei, caso contrário não consigo aproveitar o almoço na casa da minha mãe.

A chaleira apitou e eu esfreguei os olhos (coisa que não deveria fazer) e por alguns instantes tudo ficou embotado e eu já não sabia bem o que havia sido sonho e o que havia acontecido de fato. Terminei de passar o café, sentei no sofá e iniciei minha corona-obsessividade. Abri os sites daqui, abri os sites gringos, abri os links que recebi nessa janela de tempo preciosa em que consegui dormir. Os números me deram meia hora de tapa na cara e rapidamente eu já estava completamente imerso no caos.

Eu acho que você está meio assim também. Preocupado com sua própria saúde, com a saúde dos conhecidos e desconhecidos, preocupado com a economia, cansado, tenso. Esse texto, na verdade, é um abraço – o que eu te daria e o que eu gostaria de receber, não fosse a chuveirada de álcool gel que precisaríamos tomar logo em seguida.

Mas esse texto não é só um abraço. Eu tenho alguns lembretes e aspirações para deixar por aqui.

Que a gente consiga extrapolar as nossas bolhas e que sejamos justos e cheios de compaixão com quem não pôde se dar ao luxo de parar. Quando o jornal descrever essa catástrofe como "uma retração no crescimento do PIB", quando aparecer algum guru descrevendo 2020 como "o melhor ano da história para investir na bolsa de valores" ou quando surgir uma propaganda do tipo "coronavírus: crise ou oportunidade?", que esse discurso não ressoe, que reconheçamos essa violência, que nos coloquemos contra.

As telas que piscam, os órgãos, as corporações, os protocolos, os acordos, os sistemas, os governos passados, o governo em exercício, as hierarquias, os cargos, a burocracia, a bolsa de valores, a sua planilha, a minha planilha: isso tudo só faz sentido se estiver a serviço da vida de todos.

Nos meses doloridos que estão por vir (e em todos os outros), se por um microssegundo a gente se esquecer da preciosidade da vida, a ser preservada a todo custo; se por um lapso a gente esquecer da humanidade que nos conecta com todos os seres; se por um piscar de olhos a gente se esquecer do que é, de fato, prioridade, eu desejo que o lembrete seja ensurdecedor.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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eduardo antunes