Quantas vidas seu banco deixou de salvar hoje?

Hoje eu acordei e consegui postergar minha corona-obsessão para depois do café da manhã. Café tomado, peguei o celular e comecei a passar pelas mensagens do dia anterior. Vídeo criticando o presidente, vídeo elogiando o presidente, texto enaltecendo o Guedes, tirinha criticando o Guedes, bom, o de sempre, o mesmo do dia anterior. A diferença é que começaram a pipocar as reportagens enaltecendo as benfeitorias e doações que o setor privado vem praticando.

Os números são tão parrudos, são tantos zeros à direita, são valores tão distantes da nossa realidade, que talvez nos escape o óbvio: as parcas e magricelas ações que surgem são, em sua imensa maioria, marketing de oportunidade, que se comparadas ao potencial das instituições que as protagonizam, são meramente simbólicas. Menciono os bancos no título desse texto, porque a situação é caricata e extrema neste setor, mas detalho meu raciocínio abaixo.

"Você queria que todas as empresas virassem ONGs? Em que mundo você vive, Amuri, que romantismo é esse..."

Não estou sendo nada romântico, amigo. Romântico está sendo quem se nega a enxergar a realidade, e a realidade, que está sendo esfregada na nossa cara – em chinês, em italiano, em espanhol e em breve em muitas outras línguas – é que, com sorte, no melhor cenário, morrerão dezenas de milhares.

A minha tia, a sua mãe, o tio que votou no Bolsonaro, o primo que queria o Haddad, o cara que está em Santa Catarina fazendo carreata, o cara que jogou esterco nos carros da carreata, o rapaz que usa a camiseta do Lula, o amigo que gosta do Amoedo. Todos são candidatos, as pandemias são extremamente democráticas.

Essa é a realidade que conta. A dificuldade que as grandes corporações teriam em apoiar de maneira mais substancial (por conta de assembleia, trâmites burocráticos, lentidão operacional ou qualquer coisa do tipo) é real, mas me parece uma questão digna de ser enfrentada, haja visto o potencial do benefício.

Uma montanha de dinheiro não resolve uma pandemia

Isso ficará bem claro nas próximas semanas, enquanto estivermos assistindo o desenrolar triste da situação norte-americana. Nem o dono da impressora mais poderosa do mundo – a que imprime dólares – conseguirá evitar uma tragédia sem precedentes. A quantidade imensa de variáveis e ponderações a serem consideradas faz com dependamos fortemente de inúmeras outras inteligências, que serão tão (ou mais) importante do que o dinheiro.

"Amuri, quem tinha que coordenar essas ações e orquestrar o recebimento e destinação de todo apoio recebido do setor privado é o governo, né?"

Eu também acho. Mas o Estado, em grande parte de suas ações, têm sido ineficiente. Podemos discutir isso em outro momento menos catastrófico e mais conveniente, mas essa é a situação que está posta hoje: temos este cenário dantesco, complicado e dolorido de um lado, e temos, do outro lado, grandes corporações que, vejam bem, chegaram onde chegaram porque sabem lidar muitíssimo bem com cenários competitivos, complexos e caóticos. Contam com um capilar logístico. Contam com o maquinário. Contam com algumas das mentes cognitivamente mais capazes do país. Me parece uma boa hora para utilizarmos essa bazuca em prol de algo socialmente mais relevante.

Alô Accenture, McKinsey, Delloite, Totvs, PwC, Bain, e tantas outras, toda vez que eu desembarco em um aeroporto tem lá uma outdoor de vocês, tem uns que parecem maiores do que um avião, deve custar super caro colocar esse negócio lá. O que vai precisar acontecer para que vocês coloquem toda essa inteligência gerencial e administrativa à disposição da vida?

Dois dias depois dessa crise estourar eu cruzei com o site da BBDO de Nova York , que havia lançado uma pequena campanha de publicidade muitíssimo elegante. Os funcionários da própria agência de publicidade cadastravam o endereço de casa como sendo uma das sedes da empresa e, com isso, podem propagandear por aí que se tornaram a agência com mais escritórios no mundo. Baita sacada, puta ideia, timing maravilhoso e os caras bolaram isso em dois dias (!). Me parece que essa inteligência de comunicação será ridiculamente necessária nos próximos tempos. Almap, Africa, Ogilvy, Young e outras agências de publicidade geniais e criativas, vamos poder contar com isso em tempos de desinformação?

Seguindo no raciocínio, por vezes os recursos existem mas literalmente não chegam onde precisariam chegar – o que é bastante curioso, já que eu apostaria que se você fechar o olho e apontar uma cidadezinha no Google Maps, talvez não tenha água encanada, mas terá coca-cola, cerveja e cigarro. Essa inteligência logística, em tempos de crise e racionamento de recursos, é ouro. Coca-Cola, Ambev, Souza Cruz, Philip Morris e tantas outras empresas detentoras de frotas e mais frotas, que riscam o Brasil de cima até embaixo... cabem outras coisas nesse caminhão?

Uma parte muitíssimo significativa de todo o caos que será instaurado na vida do pequeno/médio empresário (e, por consequência, na vida dos milhões de funcionários dessas pequenas empresas) surgirá por conta da relação extremamente nociva e exploratória travada, de longuíssima data, com os grandes bancos. Fiz uma busca no Google, agora, enquanto escrevo o texto: o lucro somado dos 4 maiores bancos privados do Brasil em 2019 foi de, aproximadamente, arredondando para baixo (para não soar sensacionalista, ha-ha), 81 bilhões de reais.

Oferecer postergação negociada de pagamento de empréstimo chega a soar até engraçadinho. Primeiro porque, ao que tudo indica, a oferta não está claramente descrita e envolve muitas letras miúdas que, em muitos casos, colocarão o cliente em uma posição ainda mais frágil (exemplos aqui e aqui) e, segundo, porque, como era de se esperar, todo o restante da máquina segue operando de maneira predatória e insustentável: abra a página principal do seu banco (pessoa física ou jurídica) e faça uma simulação de empréstimo. Você provavelmente vai se deparar com uma taxa pornográfica, completamente desconectada da taxa básica de juros do país. Existem diversas medidas que poderiam ser tomadas: não cobrança de juros do cheque especial durante determinado período, oferta de crédito com taxa simbólica mediante comprovação de carência ou impossibilidade de pagamento, congelamento automático dos parcelamentos vigentes, abono das taxas de TED, abono das taxas de manutenção de conta, abono da anuidade do cartão de crédito, enfim, a lista é imensa. Isso representará uma fatia realmente significativa das dezenas de bilhões de reais que serão auferidos em lucro no final do ano? Provavelmente não.

Itaú (feito pra você), Santander ("o que a gente pode fazer por você hoje?"), Bradesco (que lançou a campanha "brilhe do seu jeito" – pra brilhar a gente tem que sobreviver), Banco do Brasil ("vamo", Brasil!) e tantos outros, não adianta bater com um taco de beisebol e depois oferecer um band-aid.

Num momento excepcional de uma crise que tem características das que se vê uma vez a cada 100 anos, é preciso que quem tem mais poder e renda possa assumir responsabilidades excepcionais visando o bem de todos. Surgiu um vácuo, uma lacuna, quase que um chamado, para que as grandes empresas, em colaboração com o governo, pensem em formas radicais de atuação, que contribuam de maneira irrefutável com o bem-estar da sociedade.

Para além das campanhas publicitárias e da ajuda tímida que está sendo oferecida agora, precisamos de medidas de impacto proporcional ao imenso desafio que está posto – e nada menos que isso.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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eduardo antunes