Me paga pelo Zap!

Eu sabia qual curso faria na faculdade desde muito menino. Na verdade, eu acho que decidi no momento em que vi um computador pela primeira vez. Ciência da computação – não era bem o curso que dava orgulho pra avó, em 2004 (meu deus) ser geek ainda não era um troço muito glamouroso, mas era o que me brilhava os olhos.

O curso foi cascudo, foram trocentas matérias de cálculo em uma época em que a vontade de ficar dentro da classe durante as aulas era escassa. Trabalhei uns bons anos na área, mas, pouco a pouco, os projetos relacionados a inteligência financeira foram ganhando espaço e agora, quando me dou conta, já se vão quase 9 anos desde a última vez que me pagaram alguma coisa para escrever uma linha de código. Esses dias precisei consertar um pedacinho do meu site, fui ler o manual da plataforma e foi inevitável pensar "gente, na minha época não era assim, que negócio maravilhoso e simples que isso virou" – que processo curioso que é se tornar gradativamente aquele tio que faz comentários nostálgicos, amigos.

A paixão por tecnologia, no entanto, segue. Dia desses fui dar consultoria para uma fintech e o gestor precisou falar: "Amuri, o pessoal da criação de conteúdo está te esperando" para que enfim eu deixasse o coitado do programador trabalhar em paz.

Isso posto, calculem o meu interesse nas inúmeras traquinagens que pouco a pouco tornam-se realidade: pagar com o celular, fechar a compra do mercado com o relógio, transferir dinheiro com um comando de voz, autorizar transações com um escaneamento de retina, ter um cartão de crédito que muda de cor de acordo com o percentual do limite utilizado, o desaparecimento do dinheiro de papel! É incrível! Abramos nosso coração para o que está por vir!

Mas, espera. Dá uma segurada aí. Faz um exercício comigo (faça esse exercício mentalmente, porque estamos no meio de uma pandemia e não devemos sair de casa).

O exercício é simples, é só você imaginar, com carinho e sem pressa, as duas situações abaixo.

Situação I: você gosta muito de sapatos e quer comprar um novo par que custa 300 reais, então você vai até a loja, prova o sapato, cria um apego com aquelas coisas bonitas com cheiro de couro, decide levá-los, vai até o caixa, entrega o cartão para o rapaz do caixa e diz "no crédito, por favor". Ele te responde "parcelo, senhor?", e você responde "não, pode ser uma vez só". Você sai da loja feliz com sua sacola e vai pensar nessa despesa daqui a muitos dias, quando a fatura do cartão chegar. Nenhum desconforto, experiência fluida, linda, redondinha.

Situação II: você gosta muito de sapatos e quer comprar um novo par que custa 300 reais. Você vê no instagram da loja que eles estão sem maquininha de cartão, mas hoje é seu dia de folga, então você quer aproveitar para fazer as compras. Nada me deterá, você pensa, hoje o capitalismo é todo meu. Você passa no caixa eletrônico, está uma baita fila. Coloca o cartão de débito, digita sua senha, digita 300, digita sua senha de novo e o dinheiro sai. Você vai para a loja, prova o sapato, cria um apego com aquelas coisas bonitas com cheiro de couro, decide levá-lo, vai até o caixa, põe a mão no bolso, pega a carteira, abre a carteira e lá você vê 4 notas de 50, meio alaranjadas, bonitas, e uma nota azul de 100, mais bonita ainda. Você vai tirando as notas da sua carteira, uma por uma. É uma despedida dolorosa. Você sai da loja feliz com sua sacola, porém levemente atordoado, afinal, cinco notas foram embora e você assistiu a partida de cada uma delas. Uma experiência meio torta, um misto de sentimentos: feliz com o sapato, triste com a carteira vazia.

Na segunda situação, você experimentou, fortemente, o que as ciências comportamentais chamam de dor do pagamento, uma sensação (desconfortável) que nos acomete durante as transações comerciais. A intensidade da dor depende de uma série de variáveis, a maior parte delas profundamente ligadas ao contexto. Focaremos em uma dessas variáveis, a forma de pagamento. Quando não há o dispêndio imediato e quando a transação envolve pouquíssimos passos (situação I), o desconforto é leve, a experiência é, no geral, prazerosa. Quando há o dispêndio imediato, quando você fisicamente se desfaz de algo (as notas foram embora, meu deus) e quando o processo é mais moroso (situação II), o desconforto é imenso

Embora pareça uma boa ideia reduzir ao máximo todo e qualquer desconforto (alô, Freud), isso é uma péssima ideia. A dor do pagamento é extremamente importante, já que ela, de certa forma, nos induz a uma postura mais argumentativa e ponderada, que por vezes nos leva a decisões melhores. Na ânsia de evitá-la, penso melhor se devo gastar meu dinheiro, se determinada transação (dolorida) realmente precisa ser feita. Veja, o objetivo não é nos tornarmos pão-duros e sovinas, mas, precisamos lidar com uma realidade: o dinheiro é um recurso finito, faz todo o sentido empregá-lo da melhor forma.

Digressões feitas, voltemos ao ponto principal: Amuri, quer dizer que a gente deveria usar dinheiro de papel? E os assaltos? E a praticidade? E a conveniência?

Bom, usar o dinheiro de papel por algum tempo costuma ser um exercício de educação financeira maravilhoso. É prático, é lúdico, favorece o planejamento e pode ser aplicado em inúmeros contextos mas, na minha opinião, essa pergunta é ingênua e essa argumentação, em breve, será inútil. Caminhamos a passos largos em direção a digitalização completa – já tem até termo chique em inglês pra isso, a cashless society se tornará uma realidade em pouco tempo. Combater uma tendência mundial perfeitamente plantada em uma sociedade direcionada ao consumo não me parece muito produtivo ou estratégico.

Os pagamentos pelo WhatsApp (e por aplicativos de mensagem, em geral) representam um avanço muito significativo nessa direção. É a massificação de um processo fluido de pagamento, que impactará nossos hábitos de consumo de forma drástica e irrevogável. A discussão que precisaremos colocar na mesa é outra:

De que forma essas ferramentas podem ser idealizadas, construídas e reguladas, de modo a favorecer nosso bem-estar financeiro? Como vamos nos posicionar frente a esse mar de inovação? Quais cuidados tomaremos? Como vamos apoiar os que, talvez, não tenham discernimento? De que forma a tecnologia pode ser empregada, realmente, a nosso favor?

É essa a argumentação que vale a pena, esse deveria ser um dos pilares da discussão – e não um ponto marginal a ser conversado se der tempo, depois de ter construído "um algoritmo genial que aumentará nossa receita em 1294%".

Recursos existem, a bagagem acadêmica construída nas últimas décadas é imensa, é um conhecimento já maduro, testado e extremamente aplicável. Sabemos como desenhar contextos que favoreçam a tomada de decisão. Às vezes é tão simples quanto uma mensagem que pipoca na tela e diz: "Sua fatura, que vai virar em 15 dias, já está em R$ 1.000. Pense bem por aí, já é quase o valor que você pagou mês passado!". É perfeitamente possível utilizar todo esse conhecimento dentro das engenhocas com as quais iremos interagir com mais e mais frequência nos próximos tempos.

Não quero parecer turrão, o ponto não é voltarmos ao ábaco, o desenvolvimento é maravilhoso, porém torço para que não nos falte clareza do que de fato é importante. Não precisamos de mais aplicativos coloridos, nem de dispositivos ultra tecnológicos que operem com o único intuito de nos fazer gastar mais ou, pior ainda, gastar sem sentir.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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Heloísa Sanchez