Educação financeira (também) é coisa de esquerdista

Pessoas queridas, gostaria de comentar alguns pontos relacionados ao quebra pau dos últimos dias, envolvendo a deputada Luciana Genro (do PSOL) e a PL proposta pela deputada Any Ortiz (do Cidadania), que defende a obrigatoriedade do ensino da educação financeira nas escolas do Rio Grande do Sul.

Para os que, sabe deus como, passaram ilesos pela avalanche de posicionamentos lacradores que pipocaram por aí, um pequeníssimo resumo: Luciana votou contra, argumentando que o problema das pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade econômica não é a falta de educação financeira, mas sim a falta de dinheiro.

Durante a breve defesa do seu ponto, ela comenta sobre a falsa sensação de escolha: se falta o dinheiro para comprar o botijão de gás e o feijão, contrair uma dívida no cartão de crédito é um caminho natural e inescapável, um impulso de sobrevivência – e não um erro administrativo causado por falta de conhecimento.

Como alguém que está chafurdado no tema todos os dias, já se envolveu em centenas de projetos correlatos nas esferas públicas e privadas e, principalmente, como alguém que já se estapeou com seres que se posicionam em todos pontos do espectro político, me parece que, tanto no discurso pontual da deputada quanto nas defesas e ataques subsequentes, falta cuidado e atenção às nuances e complexidades que, inevitavelmente, estão atreladas à questão.

Alguns comentários e ponderações que podem contribuir com o debate:

A visão equivocada acerca do que é, de fato, a educação financeira e, por consequência, uma perspectiva extremamente limitada a respeito das suas possibilidades

Se partirmos da premissa (equivocada) que a educação financeira é, única e exclusivamente, "organizar a listinha de gastos”, o ponto levantado pela Luciana (e por todos que defendem o breve posicionamento dado por ela) me parece coerente.

Se temos uma visão mais ampla e entendemos que a educação financeira envolve 1. a estruturação do nosso pensamento e recursos de maneira analítica e estratégica, 2. o questionamento do papel e atuação das instituições financeiras e 3. a elaboração das nossas projeções de futuro, nossos próximos passos e, principalmente, nossos sonhos mais profundos, a ponderação da deputada, sem maiores explicações e detalhamentos, é ingênua.

O perigo da pessoalização dos problemas estruturais

Se tirarmos o chapéu de torcedor de político que frequentemente enfiamos na cabeça, o posicionamento da deputada é bastante compreensível – e, não, não é despropositado. A fala inflamada e visceral parte de um lugar legítimo, de quem lida diariamente com um discurso neoliberal nefasto: "quem quer dá um jeito”, “o pobre é pobre porque não sabe lidar com o dinheiro”, "o que falta é educação", "bando de preguiçoso acomodado" e por aí vai.

É uma linha de raciocínio conveniente e falaciosa. Se estalássemos os dedos e, num passe de mágica, toda a população brasileira fosse financeiramente bem educada, nós continuaríamos com problemas muitíssimo parecidos.

Educação financeira só transforma – profundamente e em larga escala – se vier acompanhada de um plano político e econônimo focado no bem-estar de todos. Mais inclusivo. Menos classista.

Envolve o poder público (com regulação e sanções), psicologia econômica, arquitetura de escolha, defesa do consumidor e uma série de outros pilares que, pouco a pouco, vão sendo desvelados por quem dedica a vida ao tema, dentro e fora da academia.

A educação como ferramenta para que todos possamos lidar melhor com nossas vidas financeiras e com o sistema econômico é algo maravilhoso. A educação como distração para evitar que pautas inconvenientes sejam postas na mesa é só perversidade.

Um erro não justifica o outro – mas a situação é muitíssimo mais complexa do que parece

Se tirarmos o chapéu de torcedor de político que frequentemente enfiamos na cabeça, o posicionamento da deputada é bastante compreensível – e, não, não é despropositado. A fala inflamada e visceral parte de um lugar legítimo, de quem lida diariamente com um discurso neoliberal nefasto: "quem quer dá um jeito”, “o pobre é pobre porque não sabe lidar com o dinheiro”, "o que falta é educação", "bando de preguiçoso acomodado" e por aí vai.

Hordas e hordas de professores mal remunerados e a gente aqui discutindo perfumaria. Faz sentido sonharmos com educação financeira sendo que está cheio de escola pública que não tem banheiro?

Faz.

As condições básicas para que as disciplinas tradicionais sejam ofertadas precisam ser providas – e nós deveríamos brigar por isso todos os dias –, mas isso não quer dizer que não possamos caminhar com outras frentes. A educação financeira, na minha visão, deveria ser abordada de maneira transversal, perpassando as demais disciplinas.

A própria deputada, em um segundo momento, se justifica e afirma que não é contra a educação financeira nas escolas, mas sim contra a PL, por conta de uma série de motivos que não foram contemplados no pequeno vídeo que viralizou. Dentre eles, dois destaques:

  1. o cerceamento da autonomia dos Conselhos de Educação, acerca do que deveria ou não deveria ser ensinado nas escolas;

  2. as inúmeras dificuldades relacionadas a implementação – mediante a falta de recursos, como capacitar os professores? Exaustos, lidando com todo o legado pandêmico, como eles lidarão com a (mais) essa missão?

Educação financeira é pauta de quem?

Integro o ecossistema da educação financeira há pouco mais de 11 anos, gosto de pensar que estou ajudando a colocar alguns tijolinhos aqui e ali. É inegável que nosso tema ganhou palco. Nunca se consumiu tanto conteúdo, nunca tivemos tanta mídia e, na minha opinião, isso é maravilhoso.

Na paralela – e esse movimento eu, que voto com a esquerda na maioria das pautas, assisto incrédulo e triste –, grande parte dos progressistas se retiram da conversa.

Num arroubo franciscano, purista, tolo, passamos a acreditar que as temáticas que giram em torno do dinheiro e da economia são "pauta de liberal", "papo de faria limer", "coisa de direitista".

Abandonar a mesa de discussão nessa hora vai custar caro – e quem vai pagar o preço somos todos nós, integrantes da gigantesca maioria que não está lendo este texto dentro de um jatinho particular a caminho das Ilhas Maldivas.

A gente segue

Semana que vem a deputada Luciana Genro e a deputada Any Ortiz estarão debatendo outras pautas, lidando com outros assuntos, a vida delas vai seguir, e eu vou continuar dedicando meu tempo à educação financeira – eu e inúmeros colegas de profissão, de esquerda e de direita, conservadores e progressistas, votantes do PSOL e do Partido Novo.

Veja dois caminhos aqui: podemos deixar que essa seja mais uma treta de internet, rasa e barulhenta, em que ninguém cresce, ninguém escuta ninguém e todos permanecem exatamente no mesmo lugar; ou podemos aproveitar esse gancho para extrapolarmos o bate-boca sobre o PL, amadurecermos a discussão, enxergarmos o cenário a partir de outro ponto de vista e, finalmente, avançarmos alguns passinhos.

Não é uma escolha tão difícil assim.

É isso por hoje, queridos. Fiquem bem por aí.

Um abraço grande e seguimos,

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Heloísa Sanchez