Nove ponto nove

Amigos, seguindo pelos rincões portugueses, num rumo meio aleatório, motivados um tanto pelos verdes bonitos, outro tanto pelos pratos cheios, fomos parar em um canto de mundo chamado Guarda.

Reservamos a acomodação pela internet, minutos antes de ligarmos o carro. Hesitamos um tiquinho – é incrível como a abundância de opções pode ser estressante #perrenguechique –, mas a nota nos convenceu. Era 9.9, nove ponto nove. Quase dez.

Quem já se meteu nesse mundinho dos sites dedicados às pousadas e hoteis sabe como é improvável que um local tenha uma nota tão alta, uma vez que um clientezinho insatisfeito joga esse número lá pra baixo. Talvez ele tenha apenas 2 ou 3 avaliações? Talvez seja recém-chegado? Olhei a data e quantidade de comentários. Suspeitas refutadas. Publicado há quase dois anos, mais de 200 pessoas já passaram por lá, todas absurdamente satisfeitas. Expectativas foram criadas.

Chegamos e ninguém nos atendeu.

Ficamos com o carro parado na porta, com um sol de 42 graus na cabeça. Para não dizer que estávamos sozinhos, a Noemi chegou. Veio chacoalhando o rabo e se deitou nos pés da Gabriela. Uma cachorrinha. Cachorro é melhor que gente, dirão alguns, e eu tendo a concordar, mas neste momento o suor vertia da minha testa e tudo o que eu queria era me jogar na piscina.

 
 

Uns 15 minutos depois, já duvidosos da veracidade das avaliações, chegou o Joaquim. Grande Joaquim, bonachão, sorridente, ostentando seu belo bigode. Deixa eu ajudar com as malas? Eu deixo, Joaquim, eu estou empapado de suor, você pode me ajudar com as malas, sim. Entramos em uma sala de estar ampla, as escadas levavam para os quartos e pelas paredes estavam espalhados os retratos de família.

Ixi, pensei, esse é um daqueles lugares que tenta pagar de “lugar da vovó", força certa familiaridade, salpica fofura em todos os cantos, grita aquela narrativa feita por agência de publicidade pra justificar a bola de sorvete de 25 reais.

Mas não.

Era tudo genuíno. Joaquim se mostrava agradável e disposto, sem forçação de barra. Você perguntava, ele respondia.

Enquanto se movia com a agilidade permitida por seus quase setenta, ele contava histórias.

Reformei a casa e montei a pousada porque queria dar ao meu filho um motivo para ficar nos arredores. É terrível, os jovens vão todos embora. Nossa cidade perde 2000 habitantes por ano, há 15 anos".

Um comentário genuíno. Se expressava e gesticulava com certa falta de jeito e uma espirituosidade agradável – algo meio lusitano, talvez? Me lembrou meu pai.

 
 

Durante nossas 24 horas Joaquim se manteve próximo. Não havia uma grande estrutura. Ele não largou uma garrafa de champagne no nosso quarto, nem uma caixa de bombons. Fez boas recomendações, se interessou por nosso itinerário, reservou o jantar num lugar "simples que serve uma carne dos sonhos" e nos apresentou aos personagens sisudos que pendiam nas paredes.

De modo simples e corriqueiro nos apresentou um pedacinho do seu universo e (que raro) se interessou pelo nosso.

Hoje pela manhã postamos a avaliação da pousada do Joaquim.

Obviamente um 10.


A pousada do Joaquim está entupida de reservas, todos atraídos pelas avaliações elogiosas e claramente sinceras. Sua pequena empresa não possui um departamento dedicado a "experiência do cliente", ele provavelmente não está familiarizado com o hype do "customer success", mas ele coleciona clientes fidelizados – sem precisar de um aplicativo que envia notificações insuportáveis.

Saindo de lá, foi inevitável refletir sobre minhas próprias empreitadas e sobre as angústias profissionais dos autônomos e pequenas empresas que atendi nos últimos 11 anos. A fórmula do Joaquim para garantir a satisfação dos clientes me parece bem simples: atenção e cuidado genuínos. Poderíamos replicar em todo canto, não?

O ponto é mais capcioso do que parece.

É natural, fluido e fácil despejar a atenção e o cuidado autêntico em um potinho do tamanho da pousada do Joaquim.

É penoso e dolorido despejar a atenção e o cuidado autêntico em um balde gigantesco, do tamanho de uma grande corporação.

Duas discussões interessantes podem partir daqui – e eu vou ficar feliz em seguir com ambas, se você quiser me escrever (eduardo@amuri.com.br). São bem presentes no nosso tempo e, embora indiscutivelmente sérias, podem facilmente se tornar uma brigalhada sem fim, com ares de filosofia de mesa de boteco.

Sendo assim, respirem fundo por aí, amigos, não estamos elaborando uma tese sociológica, são apenas provocações.

#1 – de que maneira uma grande corporação poderia oferecer, de maneira verdadeira, esse zelo para com os clientes? aliás, ela realmente poderia? ou a escala, intrinsicamente, torna esse feito impossível?

#2 – enquanto sociedade, deveríamos seguir buscando modelos e estruturas que miram na construção de uma negócio maior, robusto, extremamente escalável, com dígitos e dígitos de faturamento, que “entregam” o "desenvolvimento"? (quantas aspas, meu deus) – ou, de certo modo, estaríamos criando estruturas criticamente não humanas, nocivas para nossa saúde mental e insustentáveis sob o ponto de vista ambiental?

Garçom, por favor, traz uma porção de coxinha aqui pra gente.


Nota do autor: Este texto foi originalmente publicado em minha coluna no Valor Investe, projeto do jornal Valor Econômico.

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eduardo antunes